Wednesday, February 28, 2007




...E era aquele momento em que o sol finalmente se põe por completo, e algumas nuances mais escuras invadem os quintais.


O calor é ameno, mas a sensação de paredes confortáveis a céu aberto fica intacta.
A garotinha de cinco anos, a puxou pela mão e apontou com susto e curiosidade para uma lesma que andava nas paredes lá fora.
Ela era enorme, sua cor verde musgo reluzia o brilho daquela pele gosmenta e ao mesmo tempo rígida.
Como algumas brincadeiras sórdidas atravessam décadas, pediu para que sua tia fosse com ela até a cozinha para pegar um pouco de sal e voltar lá para fora.
Entre uma jogada e outra de cloreto de sódio, o molusco que sofre com a desidratação ao ter esse contato, foi logo esmorecendo...
O rastro luminoso que deixava no muro aos poucos ia tomando forma dos seus tentáculos.
-Ela está diminuindo, olha!
-Que nojo, ela caiu...
E assim foi, até despencar da parede até o chão. Aos poucos aquele corpo tomou forma de uma minúscula poça de gosma verde e fluidos transparentes.O processo é relativamente rápido, haja vista o metabolismo tão lento do ser.
Sem nenhum grito, nem um alarde, apenas a limpeza de sua parede foi feita. Nem piedade era possível sentir, pois ela não demonstrava dor. Pobre ser...Desapareça! E assim mantenha minhas paredes limpas.



Tuesday, February 27, 2007

Doce




Ela aguardava seu quinto filho, e sobre a barriga que parecia ter já uns seis meses, carregava um recém-nascido enrolado na coberta, embalado na sua mão direita. Com a mão esquerda, segurava uma criança de aparentemente cinco anos que olhava com apetite para o carrinho de doces ali do lado. A sua irmã alguns anos a mais, colocava a mão na boca e fitava as balas, chicletes, e chocolates como se pudesse sentir o paladar entre a sua saliva seca. Essa era repreendida pela mais velha de todas, que olhava com irritação para as duas, sem deixar de mirar nas embalagens coloridas tão próximas dali.
De repente a mãe, que carregava no braço direito a bolsa do bebê, retirou entre uma mamadeira com o bico totalmente rasgado, uma carteira e a deu para a mais velha.
As duas observavam ansiosas enquanto constratavam a cara de choro com a expectativa daquele ato.
A menina, que vestia uma blusa uns seis números abaixo do seu tamanho, mostrava a barriga sobre uma calça de lycra suja e surrada, assim como a da sua mãe.
As outras, por mais que estivessem parecidas, conseguiam um ar de asseio e cuidado com as suas pequenas tranças amarradas com elásticos de bichinhos.
O rapaz que vendia os doces olhava para baixo com impaciência para a garota enquanto ela perguntava o preço de cada item.

- Não tem nada de 0,20 centavos?

Voltou com três chicletes e distribui para as outras, que mudaram totalmente a fisionomia, e agora conseguiam fazer brincadeiras em volta da mãe.
Logo após chegou uma mulher para comprar balas e enquanto olhava no carrinho o rapaz passou a mão sobre as embalagens, como se estivesse mostrando serviço, aguardando a sua decisão.

E as crianças?
Elas saíram com aquela momentânea felicidade na barra da blusa da mãe, até o irmãozinho mais novo crescer, e dividir aquelas moedas que sobravam para elas... Ou enquanto um novo filho ainda não era gerado nesse intervalo...

Monday, February 26, 2007



Hã!!! Que susto!! Você estava aí?
Achei que não tinha chegado ainda...Está tão quietinha ...

Silêncio.
Uma dádiva.
Podemos ficar invisíveis por horas e horas...

É um poder momentâneo de quem consegue ficar consigo mesmo sem se abalar com os contatos externos, quando é preciso.
Experimente se transportar para outro mundo mesmo estando aqui, e sem usar drogas!
Quando ouvir alguém te chamando impaciente há extensos minutos é porque você conseguiu!

Friday, February 23, 2007

créditos da foto: Monique Kovatch

Sobre a saudade

No meio de um caminho tortuoso e deserto você avista uma casinha que acompanha seus passos enquanto você a observa.
Um dia de repente você pega um barco e o que vê é ela se afastando cada vez mais, até desaparecer completamente. Embora ter sido você que entrou mar adentro e deixou ela para trás, a ilusão que a partida causa é que ela que está se esvaindo...
Apesar de não conseguir a ver mais em determinado ponto da viagem, aquela casa fica ali, na memória, e aí que se definem vários tipos de sentir falta de algo que aqui estava.
Porque a casa pode ser destruída, e você nunca mais avistá-la, o que torna vazio o lugar, o alcance visual, mas não a memória.
Anos poderão se passar, mas se a casa estiver lá, a saudade nunca vai atrapalhar a sua tarefa de reencontrá-la.
Outras casas até mais curiosas surgirão em caminhos inimagináveis, mas aquela casinha, por mais que fique apagada da memória com o passar do tempo, nunca terá outra igual que a substitua, portanto, não sairá da mente.
Podemos retornar, no mesmo barco, e visitar a mesma casa quantas vezes quisermos, mas a saudade vai sempre existir a cada ligada do motor do barco. O que consola, é que a cada descida em terra firme, a ansiedade de ver o que ficou na memória toma conta de todos os nossos sentidos e é como se víssemos aquela casa a primeira vez, com mais intensidade a cada volta.

Friday, February 16, 2007



"...avise a quem quiser , que ficarei sem dar aquelas mesmas noticias..."

Thursday, February 15, 2007

"...e quando nada acalma seus braços, a única coisa que conforta é o amor..."

Monday, February 12, 2007


Vida


Quantos morrem ainda vivos, quantos escondem seus viços e pulsações... E ainda assim procuram argumentos para justificar a ausência deles consigo mesmos.
Ser vivo é perigoso, nocivo e cruel.
Estar vivo é uma condição natural e cômoda para alguns, exceto quem está com alguma doença grave, vive sob ameaça de guerra, ou é perseguido por algum grupo terrorista.
Cada passo dói profundamente, para quem pisa com força, mas ainda sim é melhor, do que se arrastar acrescendo peso aos pés.
A vida não é bela, não é esperança, não é Deus, não é luz, não é sol...
Esses elementos estão intrínsecos à ela, mas não a tornam ser o que são.
Pois viver é arriscar, é sofrer, é machucar ferida sobre ferida, é querer fugir quando as escadas dão para porões escuros. Mas mesmo sendo tão injusta para alguns, há sempre um momento gratificante, quando podemos suspirar e nos sentir aliviados por um frio que passou aqui dentro.Porque eu prefiro o frio na barriga à barriga vazia !
Durante muito tempo quis morrer, e apesar de ainda ter asco a alguns fatores desse mundo, à espécie humana em seu ápice de hipocrisia, mediocridade e mesquinhez, eu desejo agora não estar, mas ser viva. Embora mantenho um realismo mais cruel que o pessimismo, acredito em “pessoas-humanas”, aquelas que surpreendem, aquelas que nos fazem ser melhores e desejar ficar por aqui mais um pouco.
Sem parecer escritora de livro mais vendido na seção de auto-ajuda, eu posso afirmar que desejar a morte tão verdadeiramente me fez querer viver.
Podemos acusar a nós, somente a nós mesmos. Isso é assustador ,é como se apontássemos a arma para o nosso peito. Se não for assim, não vale a pena viver, não vale a pena mofar dentro das nossas cabeças.
Há mais vida no erro, do que na polidez, e enquanto o pulso ainda vive, polimos o que é preciso ser polido, dentro da nossa casa, colocando o pó para fora, para depois tentar limpar o quintal ou a rua. Enquanto a rinite congestiona nossos narizes dentro do quarto, não podemos ver os lugares já limpos ali fora, e acabamos por não encontrar a sujeira realmente.

Friday, February 09, 2007


Batatinha quando nasce...
...desiste de morrer


Saudade é como vento
Passa forte e tumultua
Mas dizem que o que cura
É deixar passar o tempo

Pensamento segue por horas
E alivia o que há por dentro
Mas parece que agora
O que fica é o tormento

Tentei apressar os passos
Para tirar roupas do varal
Mas como lá não tinha seus braços
O que ficou foi o vendaval

A janela bate forte
E a chuva cai devagar
Já me esqueço da sorte
E no chão resolvo ficar

Tanto faz se agora o sol se deita
E no escuro eu me vejo
Ainda não encontrei a receita
Para esquecer o que desejo





Thursday, February 08, 2007

Humanos



"...A natureza divide o homem em duas classes: uma inferior, a dos ordinários, espécie de matéria, tendo por única missão reproduzir-se; a outra superior, compreendendo os homens que tem o dever de lançar no seu meio uma palavra nova. As subdivisões apresentam traços distintos bem característicos.
À primeira pertencem, em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na obediência e têm por ela um culto. Na minha opinião, são até obrigados a obedecer, porque é essa a missão que o destino lhes impõe, e isso nada tem de humilhante para eles.
O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os seus crimes são relativos e de uma gravidade variável.
A maioria deles reclama a destruição do presente por causa do melhor. Mas, se em defesa da sua idéia ,forem forçados a derramar sangue, a passar sobre cadáveres, eles podem em consciência fazer uma coisa e outra - no interesse dessa idéia ,é claro.(...)Demais não há motivos para nos inquietarmos a esse respeito: quase sempre as massas não lhes reconhecem esse direito : cortam-lhes a cabeça ou enforcam-nos , e desse modo exercem a sua missão conservadora até o dia em que essas mesmas massas erigem estátuas a esses mesmos supliciados e os veneram .O primeiro grupo é sempre senhor do presente, e o segundo é o senhor do futuro. Um conserva o mundo, multiplica-lhe os habitantes; o outro move o mundo e o dirige. Estes e aqueles têm absolutamente o mesmo direito à existência (...).”
Fiódor Dostoiévski em Crime e Castigo

Tuesday, February 06, 2007




....e quando estamos sóbreos , o mundo torna a girar, e a impressao que se dá é de uma nova ressaca...
"...De ontem em diante serei aquilo que sou no instante agora.."
O Teatro Mágico

Thursday, February 01, 2007



Do outro lado da janela



Sonhei que eu podia fumar um cigarro dentro do seu carro, enquanto conversávamos sobre a vida.
Você me deixava abrir os vidros mesmo com a garoa chata que caía lá fora.
Eu me olhava no retrovisor ajeitando os cabelos, e sentia alguns fios molhados daquela chuva.
Você erguia uma mão só no volante e a outra apoiava a cabeça na janela fechada, olhando para frente com um olhar de cansaço, e a boca entreaberta, como se ensaiasse um desabafo.
Eu notava os motivos pelos quais eu também me inquietava e iniciava a conversa.
Você não hesitava em confirmar, e dizia:
-Nem tudo deve ser tão perfeito, perfeito. Não dá tempo de viver assim...Você vê, estamos todos estressados, e infelizes...
Acordei e te vi no corredor, da porta do meu quarto.
Você estava parado na outra porta e me olhou simpaticamente, como se estivéssemos realmente tido aquela conversa.
Me senti extremamente bem e não tive dúvidas.