Thursday, February 04, 2010


À luz vermelha


Ela não via nada a sua frente.
Desde criança, vítima mesmo antes de ter consciência do que a vitimava.
Nasceu com uma doença congênita na retina, e desde então as vozes, cheiros e toques a orientavam no caminho que desejasse seguir.
A cada dia, uma nova esquina, uma mudança na calçada, um braço, um ar quente ao seu ouvido para ajudar, mesmo quando não pedia.
Viveu seus amores, criou flores em seu jardim,
E sabia pelo toque identificar a estrutura da espécie antes do seu próprio nome.
Os estames, os pistilos, os caules, a formar uma idéia da imagem de girassóis, margaridas, orquídeas... Tateava com a ponta dos dedos compridos de unhas finas os vasinhos que ficavam na área de frente à rua movimentada.
Nenhuma delas deixava de ter a sua atenção, principalmente as polinizadas pelo vento, que achava mais belas ao seu toque, independentes de uma beleza esperada, ou de outros seres para mantê-las vivas.
Com os cabelos curtos molhados, terminava de fechar os botões do seu vestido azul marinho preferido. Já passava dos 40, mas possuía uma beleza imponente, do tipo a não dar abertura para questionamento algum sobre o que se via, mesmo sem ser possível explicar em adjetivos padrões.
Os traços bem marcados do rosto circundavam as linhas do tempo como se aceitasse passivamente a sua existência, mas sem deixar de formar aquelas expressões presas na memória nítida de seus amantes.
Fugia das bengalas: nunca as usava. Andava segura a bolsa abaixo do braço, não por automatismos materiais, ou apegos por objetos de sentimentalismo irracional em espelhinhos gastos, chaveiros com fotos, santinhos com orações... Mas apenas por estar com algo externo ligado ao seu corpo.
Tinha dessas inseguranças estranhas que se mostravam como manias infalíveis.
Mas foi a ausência de medo em finalmente enxergar o mundo como todos os outros, que a fez entrar num processo de testes contínuos, para uma equipe médica.
Em certo dia, abriu os olhos como se já conhecesse as coisas como eram apresentadas desde então.
A terapia genética consistia na ingestão de uma substancia que buscava causar uma reação para se propagar.
Via com um pouco de nebulosidade as suas tantas flores a receberem os vestígios de um pôr do sol tímido. Fitava cada pêlo, músculo ou fio dos cabelos agitados de seus amigos felizes a olharem para ela.
Sabia que não era uma cura, mas pensou em poucos segundos que a sua rebeldia contida ao mundo esvaia-se do visível e se alojava na sua estrutura física e biológica. Alguns raros pacientes rejeitavam a rejeição, e dessa vez ela era necessária.
As cortinas caiam a afrontar tanta sinceridade, e o vermelho vivo foi a ultima coisa que viu entre um chão de faixas brancas.

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